Nessa noite, retive ainda uma frase que, nos dias e meses seguintes, passei a perceber o seu significado: "Aqui,nos cuidados intensivos, cada dia que passa é uma vitória..." Depressa aprendemos como isso é bem verdade...
Às 48 horas de vida, definiu-se a situação clínica dos nossos gémeos, com a qual passámos a viver nos tempos seguintes (parece impressionante aquilo que corpos tão pequenos e tão frágeis aguentam). Nesse dia a ecografia transfontanelar a que foram sujeitos revelou em ambos (com muito diferentes gravidades) uma hemorragia intra-ventricular - a Eva estava mesmo numa situação muito complicada, pois esta situação provocou-lhe hidrocefalia.
Nem sequer consigo descrever com clareza tudo o que se sente, o que se sofre, a dor profunda e interminável de ver um bebé, o nosso bebé, como nós vimos a nossa Eva... Enquanto o Martim fugia da sua caixa com toda a grandeza a que já nos habituou nestes 2 anos, a Eva lutava e sofria, agonizando em dor. Ventiladores, soros, punções, medicamentos, alimentação, fototerapia, transfusões, tudo era dor.
Poucas coisas há mais tristes do que ver uma mãe retirar do seu peito o leite, para este depois ser despejado por um tubo naso-gástrico que só terminava nos estômagos dos nossos meninos. Não podiam mamar, não podiam sair da incubadora, não podiam sentir a mamã na boca, nem colo (salvo raras excepções, para as quais tínhamos que implorar), o papá, qualquer calor humano. A luz agredia os seus olhos... A Eva e o Martim saíram do útero da mamã, onde sempre a sentiram e onde sempre se sentiram um ao outro, para - num ápice - serem colocados durante semanas a fio nas incubadoras n.º 2 e n.º 5, separadas por 10 metros e portas de vidro, no silencio dos sinais sonoros do ventilador, do perfusor, do monitor para onde durante horas a fio, pais e mães olhavam e viam a frequência cardíaca e respiratória e a saturação de oxigénio. Ainda hoje me agride a memória dos seus sons horríveis.
Para a pequena Eva não havia solução, a não ser a cirurgia, o mais rapidamente possível. Em meados de Outubro, já tudo estava programado para a sua transferência para o Hospital de Santa Maria. Estávamos aterrorizados, pois tudo era tão difícil para a Eva: tínhamos a sensação que a equipa da UCI levava o dia inteiro a estabilizá-la até chegar a noite. Quando nos despedíamos dos nossos meninos, já perto da meia noite, parecia tudo estar calmo, mas na manhã seguinte, percorríamos o corredor, abríamos o cacifo, lavávamos as mãos, entrávamos na UCI respirando fundo e… a Eva estava sempre pior. Víamos a nossa menina definhar na sua pele dorida, enrugada como um papel velho e sem cor.
Para perceber o que lhe acontecia durante a noite, passei a ser companhia do plantão de enfermeiros, muitas vezes até às 3h ou 4h da manhã. Enquanto aguentasse, dar-lhe-ia a mão. A mamã também não podia deixar mais tempo o mano mais velho, o Vicente, que estava por si só, sem casa e aos cuidados de várias pessoas, ora um, ora outro, situação que nunca tinha vivido e sem perceber nos seus 2 aninhos onde estavam a mamã e o papá, onde estava a sua caminha, onde estava a sua sala e os seus brinquedos, o seu parque, enfim... como diz a mamã Xana, faltava-lhe o chão.
Na semana da cirurgia, tudo se precipitou para a Eva. Tudo o que não podia acontecer: sepsis, enfisema pulmonar. Não sabíamos o que fazer, a Eva piorava a cada hora que passava… Não conseguiam ventila-la, um dos pulmões estava muito danificado, ao mesmo tempo, a infecção deixou-a às portas da morte. 3 dias antes da cirurgia, o médico responsável veio falar connosco e dizer que lhe tinham dado uma dose muito forte de antibiótico e que agora apenas restava esperar… a equipa mais nada poderia fazer. Foram rios de lágrimas os que chorámos, pela hipótese de serem as últimas 12 horas que iríamos passar com a nossa filha que, até então, tinha nascido para sofrer. Via-se bem, no seu esgar constante de dor.
Sem sabermos bem como, na quinta-feira dessa semana, desinfectávamos as mãos quando nos apercebemos que a Eva estava a ser preparada para ir para a mesa de operações em Santa Maria e o Martim partia para uma nova incubadora nos Cuidados Intermédios, pois estava tudo a correr bem.
A Eva foi e veio, viva, tendo-lhe sido colocado um depósito
subcutâneo na cabeça que podiam puncionar, quando existia demasiado líquido nos
seus ventrículos. Na primeira noite, fiquei de plantão para me assegurar que
aquele ser, agora inchado e de cabeça deformada que era a nossa Eva, estava connosco,
pois podia sucumbir a qualquer momento. Pela meia-noite, foi necessário puncionar pela primeira vez a sua cabeça para retirar liquido e o resultado foram duas paragens cardíacas em menos de 30 minutos. Estava sozinho com ela e com a equipa e senti-me tão impotente que apenas consegui sentar-me no chão e chorar.
Na semana seguinte a Eva parecia melhorar, já estava a fazer o desmame da morfina e quase a largar o ventilador, quando uma broncopneumonia a voltou a deitar abaixo. Quando é que tudo isto teria fim? Que fim seria? No imediato, voltou a nossa menina ao ventilador, intubada, mais uma vez sem respirar, comer, colo, etc... As saturações eram muito difíceis de manter, voltava a ser difícil ventilar e as horas afundavam-se pelas janelas altas daquela sala: se ela não respirava sozinha e não se aguentava com o ventilador...
Ao mesmo tempo, a sua cabeça era puncionada todos os dias para extraír líquor (às vezes 2 vezes por dia) pois a sua hidrocefalia continuava descontrolada... Quando vinham fazer a ecografia à incubadora da Eva, olhava para o ecran e via os grandes balões em que os seus ventrículos se tinham transformado e como pressionavam o cérebro. Entrou Novembro e a pneumonia acabou por passar, mas a primeira quinzena cavalgou sem que a Eva melhorasse. Quanto tempo aguentaria a nossa bebé naquela situação, sem respirar sozinha, com uma hidrocefalia descontrolada, sob drogas... Pensávamos, se a Eva sobrevivesse a tudo aquilo, que bebé levaríamos para casa? Pensávamos, valeria a pena prolongar o sofrimento daquele ser, para no fim ela morrer sozinha e torturada naquela caixa?
Foi nessa altura (de forma antecipada pelo susto de uma infecção resistente que já tinha colhido a vida a um bebé nos dias prévios) que o Martim veio para casa (e nós com ele, abandonámos a nossa base em Lisboa). Para nós, pais, e para a pequena Eva, foi mais um interminável fosso agora cavado pelo rio e pela Ponte Vasco da Gama. Estoicamente, a mamã continuou a alimentar com o seu leite estes gémeos e se o Martim já mamava sozinho e em casa quando queria, para a Eva era difícil gerir um stock de leite refrigerado na MAC, que tinha que ser constantemente abastecido, noite ou dia.
Mais uns dias e, em meados de Novembro, tirou-se o ventilador e a Eva foi transportada para os Cuidados Intermédios. Seja ou não um caso de um qualquer Síndrome de Estocolmo, os pais que são "vítimas" dos cuidados intensivos tornam-se dependentes da vigilância constante da UCI e, poderá parecer estranho, sofrem um medo terrivel quando os bebés passam para a sala onde, supostamente, ficam os bebés que estão melhor. Todos os pais que conhecemos nos intensivos sofreram e choraram de medo quando os seus bebés foram transferidos para os cuidados intermédios. Que contrasenso incrível, não é?
Preparou-se então a segunda cirurgia da Eva, no Hospital de Santa Maria, na qual lhe foi colocada uma derivação (um tubo subcutâneo com uma válvula que permite o escoamento do líquor em excesso para o seu abdomen, onde é então dissolvido. Se nos custou mais uma vez assinar o consentimento para uma cirurgia que, com alguma probabilidade, a Eva poderia não aguentar, a verdade é que foi um sucesso e a Eva, para descanso destes pais voltou em poucos dias à "sua" incubadora n.º 2 nos cuidados intensivos para o pós-operatório.
Para nós, pais, por esta altura já fazemos parte da mobília, já todos conhecem a nossa luta, os nossos meninos, perguntam e fazem força pela sua recuperação e em pequenas coisas sentimo-nos parte de algo maior que nós, esta relação criada naqueles tempos difíceis perdurou até hoje, quando passamos as portas da MAC para uma consulta na pediatria, ainda nos conhecem, ainda sabem quem são os nossos meninos, ainda perguntam como está a Eva. O facto de apenas depois se lembrarem que ela tinha um irmão e só então perguntarem por ele diz bem acerca da ligeireza e da sorte com que o nosso Martim passou os seus 45 dias de internamento.
Chegou então o dia em que, ao entrar na MAC com o peso de Dezembro às costas, perguntaram: "já viu a sua menina hoje? está muito bonita!" A Eva tinha retirado, finalmente e pela última vez, o ventilador. Com esperança renascida, a nossa dor era agora a nossa distância, pois com dois filhos em casa era difícil estar com a Eva o tempo que ela precisava. Uma vez mais, a nossa menina teve que respirar fundo e passar a última fase do internamento mais sozinha que nunca. Por acaso ou não, parece que alguém percebeu isso e que ela poderia sobreviver fora das paredes da MAC, pois foi-lhe dada alta ainda a tempo de ser a nossa verdadeira prenda de Natal. A Eva conseguiu. O Martim também. Estavam finalmente juntos os nossos gémeos. Desde o dia em que se juntaram em casa, dormem no mesmo leito, tal como no ventre da mamã, o pequeno Tim e a princesa Eva.
Já lá vão dois anos e ainda nos faltam as palavras para relatar tudo o que vivemos entre 24 de Setembro e 18 de Dezembro de 2011. Não é o relato de nascimento que esperava escrever, como pai, mas desse dia que nunca quis viver, acabaram por nascer os nossos lindos gémeos, apressados, pequenos e súbitos. Mas dois rasgos de vida que vieram para ficar.
Parabéns Eva e Martim.
Ao mesmo tempo, a sua cabeça era puncionada todos os dias para extraír líquor (às vezes 2 vezes por dia) pois a sua hidrocefalia continuava descontrolada... Quando vinham fazer a ecografia à incubadora da Eva, olhava para o ecran e via os grandes balões em que os seus ventrículos se tinham transformado e como pressionavam o cérebro. Entrou Novembro e a pneumonia acabou por passar, mas a primeira quinzena cavalgou sem que a Eva melhorasse. Quanto tempo aguentaria a nossa bebé naquela situação, sem respirar sozinha, com uma hidrocefalia descontrolada, sob drogas... Pensávamos, se a Eva sobrevivesse a tudo aquilo, que bebé levaríamos para casa? Pensávamos, valeria a pena prolongar o sofrimento daquele ser, para no fim ela morrer sozinha e torturada naquela caixa?
Foi nessa altura (de forma antecipada pelo susto de uma infecção resistente que já tinha colhido a vida a um bebé nos dias prévios) que o Martim veio para casa (e nós com ele, abandonámos a nossa base em Lisboa). Para nós, pais, e para a pequena Eva, foi mais um interminável fosso agora cavado pelo rio e pela Ponte Vasco da Gama. Estoicamente, a mamã continuou a alimentar com o seu leite estes gémeos e se o Martim já mamava sozinho e em casa quando queria, para a Eva era difícil gerir um stock de leite refrigerado na MAC, que tinha que ser constantemente abastecido, noite ou dia.
Mais uns dias e, em meados de Novembro, tirou-se o ventilador e a Eva foi transportada para os Cuidados Intermédios. Seja ou não um caso de um qualquer Síndrome de Estocolmo, os pais que são "vítimas" dos cuidados intensivos tornam-se dependentes da vigilância constante da UCI e, poderá parecer estranho, sofrem um medo terrivel quando os bebés passam para a sala onde, supostamente, ficam os bebés que estão melhor. Todos os pais que conhecemos nos intensivos sofreram e choraram de medo quando os seus bebés foram transferidos para os cuidados intermédios. Que contrasenso incrível, não é?
Preparou-se então a segunda cirurgia da Eva, no Hospital de Santa Maria, na qual lhe foi colocada uma derivação (um tubo subcutâneo com uma válvula que permite o escoamento do líquor em excesso para o seu abdomen, onde é então dissolvido. Se nos custou mais uma vez assinar o consentimento para uma cirurgia que, com alguma probabilidade, a Eva poderia não aguentar, a verdade é que foi um sucesso e a Eva, para descanso destes pais voltou em poucos dias à "sua" incubadora n.º 2 nos cuidados intensivos para o pós-operatório.
Para nós, pais, por esta altura já fazemos parte da mobília, já todos conhecem a nossa luta, os nossos meninos, perguntam e fazem força pela sua recuperação e em pequenas coisas sentimo-nos parte de algo maior que nós, esta relação criada naqueles tempos difíceis perdurou até hoje, quando passamos as portas da MAC para uma consulta na pediatria, ainda nos conhecem, ainda sabem quem são os nossos meninos, ainda perguntam como está a Eva. O facto de apenas depois se lembrarem que ela tinha um irmão e só então perguntarem por ele diz bem acerca da ligeireza e da sorte com que o nosso Martim passou os seus 45 dias de internamento.
Chegou então o dia em que, ao entrar na MAC com o peso de Dezembro às costas, perguntaram: "já viu a sua menina hoje? está muito bonita!" A Eva tinha retirado, finalmente e pela última vez, o ventilador. Com esperança renascida, a nossa dor era agora a nossa distância, pois com dois filhos em casa era difícil estar com a Eva o tempo que ela precisava. Uma vez mais, a nossa menina teve que respirar fundo e passar a última fase do internamento mais sozinha que nunca. Por acaso ou não, parece que alguém percebeu isso e que ela poderia sobreviver fora das paredes da MAC, pois foi-lhe dada alta ainda a tempo de ser a nossa verdadeira prenda de Natal. A Eva conseguiu. O Martim também. Estavam finalmente juntos os nossos gémeos. Desde o dia em que se juntaram em casa, dormem no mesmo leito, tal como no ventre da mamã, o pequeno Tim e a princesa Eva.
Já lá vão dois anos e ainda nos faltam as palavras para relatar tudo o que vivemos entre 24 de Setembro e 18 de Dezembro de 2011. Não é o relato de nascimento que esperava escrever, como pai, mas desse dia que nunca quis viver, acabaram por nascer os nossos lindos gémeos, apressados, pequenos e súbitos. Mas dois rasgos de vida que vieram para ficar.
Parabéns Eva e Martim.